AUTOMEDICAÇÃO

Em interessante pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Farmácia em 2019, 77 % dos brasileiros afirmam utilizar medicamentos sem prescrição, sendo que destes 25 % usam todo dia ou uma vez por semana.

Todo e qualquer medicamento produz efeitos indesejados. Mexe no nosso equilíbrio, ou seja, por mais que ele seja necessário sempre haverá um preço a ser pago. Resumindo: o medicamento é utilizado pelo benefício que esperamos que gere, mas sempre levará a algum dano. Somente um profissional da saúde poderá avaliar adequadamente se esse benefício é maior que o malefício, justificando seu uso.

Para ilustrar esse uso, coloco dois exemplos de medicamentos muito utilizados sem prescrição e que levam à danos ao organismo.

  • Uso de antinflamatório no caso de dor de garganta:

O antinflamatório, como o próprio nome diz, diminui a inflamação, que nada mais é que a resposta imune do nosso organismo à presença de um microrganismo (seja bactéria ou vírus). É indicado para processos inflamatórios que não são de origem infecciosa, como traumas físicos (torções, cortes,…), alergias, queimaduras, neoplasias, doenças autoimunes,…. Então, por que vamos tomar um medicamento que vai diminuir nossa resposta ao agente agressor? Para diminuir os sintomas: dor dificuldade de deglutição, dores articulares e musculares, febre. O grande problema é que esses sintomas são importantes sinais da doença, avisam que há algo errado com nosso organismo. Quando tomamos o medicamento temos uma falsa impressão de que está tudo certo, podendo ainda mascarar e prolongar os sintomas. Certamente o medicamento irá melhorar os sintomas, porém de maneira apenas paliativa: passando o seu tempo de ação os sintomas voltam.

Mas o que fazer então quando estou com dor de garganta e febre? Nesse caso você provavelmente tem uma faringite infecciosa, que pode ser causada por bactérias e vírus. Se infecção for causada por vírus a recomendação é repouso, hidratação, antitérmico (nos períodos febris). Essa infecção é autolimitada, deve ser resolvida espontaneamente em 3 a 5 dias. No caso de infecção bacteriana a situação é diferente, pois exige a utilização de antibiótico, visto que a nosso sistema imune necessita de ajuda para eliminar a bactéria.

  • Uso de antiácido para dor estomacal (azia, “queimação”):

Quando estamos com dor de estômago nosso primeiro reflexo é tomar um antiácido (sal de fruta, leite de Magnésio, omeprazol, pantoprazol, ranitidina,…). Muitos até pensam que antiácido não é medicamento, mas um “digestivo”. Mas funciona exatamente ao contrário, pois é um “anti-digestivo”. Vou explicar: quando comemos algo nosso estômago aguarda o alimento produzindo ácido clorídrico. Esse é o processo natural. Quando temos dor de estômago, talvez possamos ter exagerado na quantidade de alimento ou de proteínas, que requerem um tempo maior de armazenamento gástrico. Ou seja, esse ácido é muito importante para a digestão. O que acontece quando tomamos antiácido? O nosso pH gástrico aumenta (pela neutralização do ácido) e como temos receptores na parede do estômago eles vão sentir esse aumento, estimulando a produção de gastrina, que é o hormônio que vai estimular de ácido clorídrico. É o que chamamos de efeito rebote. Ou seja, quando mais antiácido utilizarmos mais o pH gástrico vai aumentar, nosso corpo vai responder produzindo mais ácido  necessitaremos de mais antiácido para aliviar os sintomas.

Mas qual a solução? Primeiramente rever hábitos alimentares, pois se essa dor de estômago for pontual (um dia de exagero, algo fora do padrão) o medicamento pode ser útil. Porém caso os sintomas sejam persistentes cabe procurar atendimento profissional para avaliar as causas associadas e realmente verificar, realizar diagnóstico e avaliar a necessidade de uso de algum medicamento.

Mas o que leva as pessoas a optarem pela automedicação ao invés de buscar suporte médico?

São vários motivos, cito abaixo os principais:

  • Dificuldades de acesso ao sistema de saúde: mesmo com a ampliação do SUS, nem todas as pessoas tem acesso ao atendimento em saúde e consequentemente aos medicamentos e prescrição;
  • Uso anterior: é muito comum acharem que, por já ter usado o medicamento anteriormente, não há necessidade de avaliação médica;
  • Indicação de amigos/ familiares: o vínculo de confiança de amigos e familiares fazem com que possamos achar que “o que foi bom para meu amigo será bom pra mim”;
  • Vulgarização do medicamento: muitas pessoas acham que um medicamento é muito “fraquinho”, que não tem efeitos adversos e não faz nenhum mal;
  • Pesquisa na internet: busca ativa de informações sobre doenças e medicamentos utilizados, avaliando indicações clinicas do uso de medicamentos e se ajustam com os sintomas apresentados;
  • Facilidade de compra: nunca foi tão fácil comprar um medicamento, podendo ser feito até pela internet;
  • Busca da “cura mágica”: opção por uma cura milagrosa para um mal do que buscar a causa do problema. Por exemplo, é muito mais fácil tomar um anorexígeno (medicamento para emagrecer) do que se alimentar de maneira mais equilibrada, praticar exercício físico,….. Outro exemplo: utilizar antidepressivo quando perdemos emprego, ou ao término de uma relação amorosa, como se o medicamento fosse ajudar a resolver nosso problema.
  • Propaganda farmacêutica: o marketing farmacêutico foi regulamentado mas ainda é um importante fator para opção de automedicação e escolha dos medicamentos;
  • Mercantilização da atividade farmacêutico: segundo o conselho Nacional de Saúde, no Brasil temos em torno de 1 farmácia a cada 3 mil habitantes, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda 1 a cada 8 mil habitantes. Essa disputa comercial leva à uma guerra de preços e divulgação de promoções, facilitando a disseminação de medicamentos desnecessários. Lembrando: apesar da farmácia constituir uma unidade comercial, é um estabelecimento de saúde e exige regras de vendas específicas. Não é o mesmo que uma loja de roupas ou de eletrônicos.

Vivemos na era da informação. Hoje todas as pessoas tem acesso muito fácil à ela, o que sem dúvida é muito bom. O que preocupa é o uso desta informação, pois podem acabar se sentido aptas a escolher medicamentos, como se o seu uso fosse algo simples e não necessitasse cuidados especiais.

É ótimo empoderar as pessoas e mostrar que cuidar de si mesmo não é tão difícil. Mas precisamos lembrar que o melhor e mais efetivo remédio é a prevenção. Ter uma vida saudável que diminua a necessidade do uso de medicamentos.

Descrevo abaixo os três desafios a serem vencidos quando se realiza a automedicação:

  • Diagnóstico: quando buscamos o diagnóstico de uma doença através da internet, o tratamento já pode iniciar de forma equivocada: como posso escolher o tratamento adequado se o diagnóstico não for correto? Por exemplo, se estou com diarreia, quer dizer que tenho uma infecção? Se for infecção, será que é causada por bactérias ou vírus? Mas se não tenho febre, praticamente descartamos a possibilidade de infecção, o que pode ser? Intoxicação? Alergia alimentar? Síndrome do intestino irritado? Intolerância à lactose? Esteatose hepática? Efeito adverso de algum medicamento? Stress? Cada uma dessas inúmeras causas requer uma abordagem medicamentosa diferente.
  • Medicamento: partindo da premissa que o diagnóstico é correto, as opções terapêuticas são múltiplas, considerando o grupo de drogas mais indicado, mesmo dentro de um único grupo são muitas opções e ainda precisaremos escolher qual a marca. Por exemplo: se estou com infecção urinária, é necessário uso de antibióticos. Dentre os antibióticos podemos escolher entre vários grupos, como penicilinas, cefalosporinas, quinolonas,…. Caso optarmos por utilizar cefalosporinas ainda precisaremos escolher utilizar cefazolina, cefalexina, cefuroxima, ……Supondo que escolheu cefazolina, são várias marcas comerciais com o mesmo princípio ativo: kefazol, cefazolina, ceftrat, celozina, fazolon,…

*Antibióticos só são vendidos sob prescrição médica, então essas decisões não caberão ao paciente. Usei como exemplo para demonstrar a dificuldade de escolha.

  • Posologia e via de administração: já fiz o diagnóstico correto, escolhi qual o medicamento vou usar mas agora preciso verificar o regime. Vou usar por via oral ou sublingual? De 8 em 8 horas ou uma vez por dia? Por quantos dias? São tantas as opções de uso que, apesar de existirem recomendações pré-estabelecidas na bula, não necessariamente é a melhor opção para o caso. É impensável imaginar que um leigo possa acertar em todos esses itens.

Fica claro que a participação de um profissional de saúde é indispensável para a realização de um tratamento adequado.

Quais as principais medidas a serem tomadas para a conscientização da população em relação à prática da automedicação?

  • Ampliação do acesso ao saúde: à medida que melhoramos as condições (quantitativas e qualitativas) de atendimento em saúde estamos diminuindo a necessidade de automedicação;
  • Atenção farmacêutica: a presença do profissional farmacêutico no momento de dispensação do medicamento será fundamental na orientação de uso e riscos inerentes à automedicação;
  • Maior rigor no marketing farmacêutico: restringir a divulgação de medicamentos nos meios de comunicação ajuda a diminuir a intenção de compra de medicamentos;
  • Orientação adequada no ato da prescrição: o prescritor deve orientar adequadamente sobre o uso do medicamento. Isso demonstrará à pessoa que todo medicamento tem indicações clínicas específicas e devem ser utilizados somente conforme orientado;
  • Campanhas públicas: Os órgão reguladores (ANVISA e Ministério da Saúde) e fiscalizadores profissionais (Conselhos Federais de Farmácia e Medicina) devem regularmente veicular campanhas informando sobre o risco do uso da automedicação.